Ilegalidade. Enriquecimento ilícito. Abuso de direito.
Diversos prestadores de serviço ao poder público por vezes encontram dificuldades no recebimento do valor relativo aos serviços efetivamente prestados porque não apresentam Certidão de Regularidade do FGTS; Certidão Negativa de Débito do INSS e Certidão Negativa de Débitos de Tributos e Contribuições Federais. A situação é curiosa: o valor a ser recebido é muitas vezes aquele que, retido, não permitiu o pagamento do débito que propiciou a inscrição na dívida ativa.
Essa retenção é de todo imoral e abusiva. O serviço foi efetivamente prestado e cabe ao tomador unicamente realizar o pagamento do que foi pactuado.
A Lei de Licitações (Lei nº 8.666/93), em seu artigo 55, inciso XIII, disciplina:
“Art. 55. São cláusulas necessárias em todo contrato as que estabeleçam: (…)
XIII – A obrigação do contratado de manter, durante toda a execução do contrato, em compatibilidade com as obrigações por ele assumidas, todas as condições de habilitação e qualificação exigidas na licitação”.
Também estão na lei os requisitos para a habilitação de uma empresa ao contratar com a administração:
Art. 27. Para a habilitação nas licitações exigir-se-á dos interessados, exclusivamente, documentação relativa a:
I – habilitação jurídica;
II – qualificação técnica;
III – qualificação econômico-financeira;
IV – regularidade fiscal
V – cumprimento do disposto no inciso XXXIII do art. 7o da Constituição Federal”.
Em primeira leitura, induz-se ao entendimento de que a retenção não seria ilegal ou abusiva. No entanto, ainda que o contratado não mantenha a durante a execução do contrato as condições exigidas na habilitação, disso não decorre ser a retenção compatível com o regramento constitucional ou infraconstitucional.
Segundo jurisprudência pacificada em nosso Tribunal Regional Federal, cujos reescritos seguem abaixo, a administração não pode reter pagamento devido de serviços efetivamente prestados sob pena de decorrer em ilegalidade e enriquecimento ilícito:
“CONTRATO ADMINISTRATIVO. SERVIÇOS DEVIDAMENTE PRESTADOS. IRREGULARIDADE DA CONTRATADA JUNTO AO SICAF. FALTA DE PAGAMENTO. ENRIQUECIMENTO ILÍCITO DA ADMINISTRAÇÃO.
1. Improcedência da preliminar de impossibilidade jurídica do pedido, porquanto esta somente se caracteriza se houver, no ordenamento jurídico, norma que proíba, expressamente, a pretensão do autor, o que não é o caso, pois o pedido de pagamento de quantia referente a serviços efetivamente prestados à União é admissível. 2. A situação irregular da empresa perante o SICAF impede a sua participação em licitação e a assinatura de contrato administrativo, mas não o pagamento relativo a serviço por ela efetivamente prestado, sob pena de enriquecimento ilícito da Administração. Precedentes desta Corte. 3. Apelação e remessa oficial, considerada interposta, não providas”.
(AC 1999.34.00.017130-6/DF. TRF1: 6a Turma, DESEMBARGADORA FEDERAL MARIA ISABEL GALLOTTI RODRIGUES, julgado de 21/03/2005, publicado em 11/04/2005 DJ, p.134)
Neste mesmo sentido:
“ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇO DE TRANSPORTE. EMPRESA BRASILEIRA DE CORREIOS E TELÉGRAFOS – ECT
EXIGÊNCIA DE COMPROVAÇÃO DE REGULARIDADE FISCAL. LEGALIDADE. RETENÇÃO DO PAGAMENTO POR FALTA DE COMPROVAÇÃO DA REGULARIDADE. ILEGALIDADE
MANDADO DE SEGURANÇA. CABIMENTO.
1. O mandado de segurança é ação adequada para impugnar o ato de dirigente de empresa pública federal, praticado no exercício de atribuição delegada do Poder Público, sendo legitimado passivamente para a causa, na hipótese, o gerente operacional da ECT, que o praticou e tem competência para cumprir a determinação emanada do Poder Judiciário.
2. É legítima a exigência, para contratação com o Poder Público, de comprovação de regularidade do fornecedor para com a Seguridade Social e com o FGTS, regularidade que deve ser comprovada durante toda a execução do contrato (Lei n. 8.666/93, art. 29, IV, e art. 55, XIII).
3. Não se afigura legítima, todavia, por falta de previsão legal, a retenção do pagamento do serviço prestado, pela circunstância de a empresa contratada não atender a notificação para comprovar sua regularidade fiscal.
4. Segurança concedida parcialmente.
5. Sentença confirmada.
6. Apelação e remessa oficial desprovidas”.
(AMS 1999.38.00.014985-8/MG. TRF1: 6a Turma, DESEMBARGADOR FEDERAL DANIEL PAES RIBEIRO, julgado de 10/02/2003 , publicado em 10/03/2003 DJ p.116)
Malgrado remansosa jurisprudência, ainda se vê com freqüência a retenção de pagamento nas hipóteses narradas, ocasionando a retenção indevida maior dificuldade para a regularização da situação pela contratada, com o que se caracteriza um patente enriquecimento ilícito, consistente em, conforme leciona Arnoldo Medeiros da Fonseca “deslocamento patrimonial sem justa causa, em consequência do qual alguém se enriquece em detrimento de outrem, ficando, por isso, legalmente obrigado a restituir o proveito indevidamente auferido”. (in “Repertório Enciclopédico do Direito Brasileiro”, Ed. Borsoi, Vol. 20, pag. 237).
A administração, de seu turno, invoca submissão à lei. Mas embora em parte com razão a administração, a conjugação de todos os regramentos que envolvem a contratação acaba por revelar situação de extrema injustiça com o prestador dos serviços. O objeto da contratação foi alcançado e o valor correspondente deve ser pago. A exigência de quitação de débitos, embora expressa na lei, se mostra acessória se comparada a outros princípios que devem ser considerados preponderantes, especialmente aquele que veda o enriquecimento sem causa. Ainda sob o magistério de Arnoldo Medeiros da Fonseca se revela uma situação que bem se ajusta ao tema em análise:
“Efetivamente, é de reconhecer-se que o enriquecimento que surge, às vezes, para um sujeito, apoiado na lei, por motivos de segurança e lógica jurídica, pode também, sob outro aspecto, aparecer como injustificado ou sem causa, se se ponderar que a regulamentação justa das relações patrimoniais é o fim último do direito que as rege”. (Ob. cit., pág. 241).
Destarte, claro resta que a retenção do pagamento devido constitui flagrante possibilidade de ocorrer injusto enriquecimento de um em detrimento de outro, o que impõe seja coibido.
De se cogitar, ainda, do abuso do direito que se verifica com a retenção indevida do pagamento dos serviços prestados. Interessante é a manifestação de Alvino Lima, em sua monografia “Da influência, no Direito Civil, do Movimento Socializador do Direito”, in Revista da Faculdade de Direito, vol. XXXV, pag. 210, a seguir transcrita:
“A concepção social do direito triunfa, delimitando os direitos subjetivos nas suas múltiplas manifestações, não no sentido de aniquilar o indivíduo ou os seus direitos, concentrando o poder nas mãos da coletividade. Ao contrário. Procurando resguardar interesses coletivos na verdade se defendem os direitos de cada um na comunhão social; procurando restringir os direitos subjetivos amparados na igualdade, formal, que é o apanágio dos mais fortes, no sentido de se defender a verdadeira igualdade, a concepção socializadora do direito faz obra do mais nobre e elevado individualismo. Não deste individualismo artificial, meramente potencial, estribando em princípios dogmáticos que a realidade social e econômica destrói, fazendo os homens desiguais; não deste individualismo que coloca a liberdade de contratar como diz MENGER, ao lado da guilhotina, liberdade de ditadura do que é socialmente poderoso, como acentua RADBRUCH. Não deste individualismo que coloca que isola o homem do meio social, para considerá-lo como a única força propulsora das idéias e das conquistas humanas, esquecendo-se do esforço comum, desta cooperação de energias, deste patrimônio comum que nos legaram as gerações passadas e sobre o qual construímos, num momento histórico, o que devemos transmitir às gerações passadas e sobre o qual construímos, num momento histórico, o que devemos transmitir às gerações porvindoiras. Mas deste individualismo que, não olvidando o interesse coletivo ou a solidariedade social, traça as normas jurídicas, procurando tanto quanto possível, expungir do direito as desigualdades econômicas e sociais, com o supremo fim, perpassado de um idealismo sagrado, de reconhecer a todos o maior número de direitos alargando as suas garantias e assegurando o seu exercício.”
A teoria do abuso do direito, conforme os ensinamentos de Silvio Trentin, in “La crise du Droit et de l’état”, pga. 363, proclamando a relatividade dos direitos, não negou a existência dos direitos subjetivos, mas exaltou a influência da moral no direito, combatendo aquilo que o doutrinador francês denominou de “egotismo”- doutrinas que definem o indivíduo como limitado em si próprio.
Dita teoria viria então a vencer o “egotismo” daqueles que, sob o conceito de direito absoluto, fechado nos limites imprecisos e incompletos da norma positiva, lesam os direitos de terceiros, causando-lhes danos, sem obediência aos princípios superiores da conduta humana, os quais não podem estar consubstanciados nos preceitos legais.
Segundo Alvino Lima, “o direito não é somente uma regra, mas uma regra realizada ou que se realiza; não vive abstratamente nos códigos, mas representa uma vida, como direito legal ou costumeiro, retorna à vida, uma vez concretizado; eleva-se soberanamente sobre a vida e servindo-a, confere-lhe um valor superior. Ao lado de seu lado formal dogmático, o direito aparece na sua natureza orgânica e sociológica; a lei e o direito não são, pois, idênticos”.
A configuração do abuso de direito se dá com a mera a atitude de reter o pagamento devido, se valendo a autoridade de exigências de regularidade fiscal que não tem relação com a garantia do cumprimento dos serviços contratados e que foram devidamente prestados.