A Constituição Federal, em seu artigo 5º, inciso VI diz que “é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e suas liturgias“. Por seu turno, a Declaração Universal dos Direitos Humanos também consagra ser a Liberdade religiosa um direito fundamental.
As religiões, ou mesmo os grupos enquadrados como “seita”, entendidos estes como aqueles que, julgando-se resguardados pela “liberdade religiosa”, abrigam-se sob o pálio da religião e visam extrapolar suas fronteiras para os campos “terapêutico”, “pedagógico”, “comercial”, têm por praxe receber dos seus fiéis ou seguidores valores variados a que dão o nome de “dízimo”.
O dízimo é uma recomendação bíblica, com
citações no Antigo e no Novo Testamento (Gn 14,20; Ml 3,8-10; Lv 27,32; Gn 28,22; Ex 22,28; 2 Cor 9,6-12; At 4,32; Mt 23,23) e pode ser traduzido como um ato de gratidão a Deus, do qual se recebe, segundo os que crêem, tudo o que têm. É a devolução a Deus de um pouco do que dele se recebe, por meio da Igreja, para que seu Reino se espalhe entre os fiéis. As citações são carregadas de esperança, podendo-se ver na de Malaquias a extraordinária potencialidade da contribuição: ”Tragam o dízimo. Façam essa experiência comigo. Vocês vão ver se não abro as comportas do céu, se não derramo sobre vocês as minhas bênçãos de fartura” (Ml 3,8).
Estabeleceu-se, também, a periodicidade mensal do dízimo e, malgrado a palavra signifique a décima parte de algo, os valores podem ser encurtados ou elastecidos, conforme a pregação de São Paulo : ”Dê cada um conforme o impulso do seu coração, sem tristeza nem constrangimento. Deus ama o que dá com alegria.”
Sem pretender questionar as passagens religiosas que autorizam a cobrança do dízimo, inseridas que estão no conceito de liberdade religiosa a que todos devemos respeitar, convém perscrutar se as religiões, valendo-se da licença bíblica de receber dos fiéis a décima parte de algo, não estariam a construir modelo de vontade não autorizado pela ordem jurídica.
De efeito, tem sido muito freqüente dar-se conhecimento de ações cometidas por fiéis que, a despeito dos clamores familiares, deixam-se seduzir por pregações gananciosas que acabam por lhe retirar em muitos casos a quase totalidade de seu patrimônio. E tal se dá após repetidas presenças em cultos onde se processam as denominadas conversões.
As técnicas de “conversão” remetem a Pavlov, um cientista russo que, nos idos de 1900, por meio de seu trabalho com animais, abriu a porta para maiores investigações com humanos. Três distintos e progressivos estados de inibição transmarginal foram identificados por Pavlov. O Equivalente, o Paradoxal e o Ultraparadoxal. Com a progressão por cada fase, o grau de conversão torna-se mais efetivo e completo. São muitos e variados os modos de alcançar a conversão, mas o primeiro passo é trabalhar nas emoções de um indivíduo ou grupo, até eles chegarem a um nível exacerbado de raiva, medo, excitação, tensão nervosa ou qualquer outro tipo de emoção. O resultado progressivo dessa condição mental é prejudicar o julgamento e aumentar a sugestibilidade. Quanto mais essa condição é mantida ou intensificada, mais ela se mistura. Uma vez que a catarse, ou a primeira fase cerebral é alcançada, uma completa mudança mental torna-se mais fácil. A programação mental existente pode ser substituída por novos padrões de pensamento e comportamento.
Modernamente, sabe-se que os procedimentos utilizados são mais do que meras técnicas de persuasão, resultando na redução do pensamento, e eventualmente, se usado por muito tempo, à cessação de todo pensamento e a retirada de todo o conteúdo da mente, exceto os desejados pelos “missionários”.
Diante de variados e numerosos relatos científicos que atestam a redução da capacidade de discernimento e, por conseguinte, interferem na livre manifestação da vontade, cumpre perquirir se a entrega às igrejas de valor superior a 10% da renda do seu seguidor ofende a validade do negócio jurídico caracterizado como doação.
A teor do art.538, do CC, “considera-se doação o contrato em que uma pessoa, por liberalidade, transfere do seu patrimônio bens ou vantagens para o de outra”. Malgrado ser considerada nula a doação de todos os bens sem reserva
de parte, ou renda suficiente para a subsistência do doador, bem como quando a doação quanto à parte que exceder à de que o doador, no momento da liberalidade, poderia dispor em testamento, percebe-se que ainda assim as doações têm atormentado a vida de diversas famílias, que se vêem, irremediavelmente, prejudicadas por tais negócios jurídicos.
Como se sabe, negócio jurídico é toda ação ou omissão humana cujos efeitos jurídicos – criação, modificação, conservação ou extinção de direitos – derivam essencialmente da manifestação de vontade. Seus elementos essenciais (essentialia negotii) são aqueles indispensáveis à existência do ato: vontade, objeto, forma e, para certa corrente doutrinária, a causa. Assim, para a validade do negócio jurídico exige-se que esses elementos tenham determinados requisitos ou atributos, qualidades que a lei indica, como a declaração de vontade deve resultar de agente capaz, o objeto deve ser lícito, possível, determinado ou determinável e a forma deve ser conforme à lei.
Ocorrem defeitos do negócio jurídico quando surgem imperfeições decorrentes de anomalias na formação da vontade ou em sua declaração. A vontade viciada torna o negócio anulável. O vício de consentimento impede que a vontade seja livre, espontânea e de boa fé, o que fatalmente prejudica a validade do negócio jurídico. Para a vontade ser jurígena (gerar os efeitos jurídicos desejados) é imprescindível que seja livremente manifestada, de forma espontânea e de boa-fé. No defeito de que se trata, a vontade é constrangida por ato de pessoa, pessoas ou grupo plenamente identificáveis. O negócio jurídico é cometido com dolo, por exemplo, por quem induz alguém a erro. O dolo decorre do ardil, artifício ou expediente usado para induzir alguém à prática de um ato que o prejudica e aproveita o autor do dolo ou a terceiro.
Cogite-se, também, a possibilidade de anulação do negócio por coação, a qual representa toda ameaça ou pressão exercida sobre a pessoa para obrigá-la a praticar ato ou realizar negócio jurídico, para o qual a sua vontade já para o qual a sua vontade já estará afetada.
Ainda que não se considere coação a simples ameaça, o exercício normal de direito e nem o temor reverencial, o direito e a jurisprudência não podem ficar alheios às modificações de vontades decorrentes dos processos de “conversão” que implicam no despojamento de bens.
De efeito, a autonomia privada se constitui princípio para a promoção dos valores sociais segundo a ordem pública constitucional, pelo que não se pode dar guarida a contraprestações injustas. Nos casos em que a doação superar os 10%, portanto, é hora de a jurisprudência e, no futuro, a própria lei, de forma específica, reconhecer que a lesão está objetivamente caracterizada e, em respeito à idéia de justiça contratual, declarar de plano a invalidade de doações que alargam o percentual plausível de 10%.
Luiz Filipe Ribeiro Coelho, advogado, ex-presidente da OAB-DF.