A jurisprudência consolidada sempre se orientou no sentido de que aborrecimentos, frustrações e outros embaraços do dia a dia configurariam mero dissabor. Com esse entendimento, e na expectativa de não banalizar o instituto do dano moral, o Poder Judiciário, reiteradamente, negou a indenização por dano extrapatrimonial. Inúmeras ações foram propostas para requerer o dano moral nas mais diversas circunstâncias, seja em razão de um plano de internet deficiente; seja nos diversos encaminhamentos de um veículo à concessionária para a resolução de um problema; seja na emissão indevida de um boleto bancário. Os exemplos seriam intermináveis, não só na esfera consumerista. Mesmo em atos administrativos reconhecidamente ilegais e arbitrários, com graves prejuízos à parte, o dano moral foi também rotulado como mero dissabor.
Cada um de nós certamente terá experimentado uma situação desagradável em relação a um serviço ou produto e durante a leitura deste texto, possivelmente, relembrará do fato, que poderá ter sido ou não objeto de uma ação judicial de reparação. Muitos se lembrarão que perderam as ações porque o Judiciário entendeu tratar-se de “mero dissabor do dia a dia”, expressão que restou consagrada para negar a indenização. Muitos se lembrarão que deixaram de buscar os seus direitos porque se tinha popularizado que “os meros dissabores do dia a dia” não são indenizáveis.
O Judiciário se manteve firme nesse entendimento porque, de modo geral, exigia que a conduta do agente a permitir a indenização por dano moral deveria comprovar a existência do abalo psicológico suportado. Para diversos operadores do direito, no entanto, essa orientação jurisprudencial desdizia a proteção ao consumidor inserida na Constituição Federal (art. 5º, inciso XXXII, “o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor”), com a regulamentação dada pela Lei 8.078/90, o Código de Defesa do Consumidor (CDC).
Reconhecendo a vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo, o CDC promoveu a harmonização da relação jurídica entre o consumidor e o fornecedor, antes tratada apenas como mera relação contratual, tipificando práticas comerciais consideradas abusivas e sua repressão. Essas razões do CDC vêm sendo insistentemente usadas contra a monocórdica repetição dos conceitos balizadores da jurisprudência calcada na não indenização “dos meros dissabores”. Tem se insistido que fatos comumente observados no cotidiano das pessoas (as situações desagradáveis, não causadas pelos consumidores, que implicam na perda de tempo para solução) são suscetíveis de reparação por danos morais.
Exatamente para contemplar essas situações, plasmou a doutrina a denominada Teoria do Desvio Produtivo, na qual se reconhece a importância do tempo na vida das pessoas e o dever de indenizar pela tão simples perda do tempo útil. O tempo cada vez mais se oferece como um bem a ser indenizado, um bem que, uma vez perdido, é definitivamente irrecuperável. A violação a esse direito implica dever de indenizar. Nessa linha, espera-se que o surrado “mero dissabor do dia a dia” venha a ser abandonado pelo Judiciário como fundamento para a não concessão do direito à reparação, entendendo-se que, embora tenhamos todo o tempo do mundo, cabe apenas ao titular do direito ao seu próprio tempo dizer como vai usá-lo. Aquele que der azo à perda do tempo alheio deve estar sujeito ao dever de indenizar, para que se desestimulem práticas semelhantes.