Sexta-feira, final de tarde, resolvi dar um pulinho ao cinema. Chamava atenção o aglomerado, basicamente formado por adolescentes, para assistir, muito mais tarde, ao lançamento de Harry Potter. Embora goste dos filmes de J.K.Rowling, havia dois problemas a enfrentar: primeiro, eram ainda 6 da tarde e a sessão só começava à meia-noite. Depois, a fila, já àquela hora, era assustadora. Fiquei, portanto, com o oposto daquilo que me afastara de Harry: nenhuma fila e sessão imediata! E que filme se prestava à essas mínimas exigências: Muita Calma Nessa Hora! O filme tem cenas engraçadas, reúne humoristas e atores do momento. É um filme agradável de se ver, a não ser por um detalhe: o uso absolutamente despropositado da maconha. Não vou falar a favor ou contra o uso da maconha. Deixo para os especialistas. Mas o que se viu no filme me parece inaceitável. O filme vem rodando bem, com cenas divertidas e algumas nem tanto e então aparece a maconha rolando levemente, de consumo tão livre e ingênuo tal qual o dos biscoitos “Globo”. Alô Erva, Alô Biscoito! O uso recreativo da erva revela evidente apologia. Creio que toda a forma de informação, embora algumas autoridades pensem em contrário, não pode ser submetida à censura. Mas não é disso que se trata. Não há nas cenas enfumaçadas qualquer sinal de crítica à criminalização do uso da droga ou às políticas públicas para o tema. Ao contrário, estimula-se o uso recreativo da planta e pronto! E aí, meu amigo, é preciso muita calma nessa hora! Não me pareceria impertinente se alguém do elenco aparecesse, mesmo fumando, e defendesse a descriminalização, com eventual diminuição nos índices de violência; os indicadores positivos de seu uso terapêutico ou mesmo os benefícios no uso não-médico. Mas a aparição jamais deveria prescindir de um tom crítico. Como é comum em diversos filmes aparecerem cenas que claramente mostram o lado marginal do uso da droga, não se deve fugir ao debate sonegando espaço àqueles que acreditam em outra abordagem. No entanto, o que o filme traz é evidente apologia e apologia a crime é crime. É crime contra a paz pública. Essa paz pública de que trata o Código Penal só poderá ser alcançada se houver o respeito às instituições. E nossas instituições dizem que é crime usar maconha e é crime fazer apologia ao uso de drogas. E aí fica ainda mais difícil de entender: Se tudo isso é crime, se recursos do Estado são destinados à prevenção e repressão de condutas ilegais, qual a razão de um filme que contém cenas com esse perfil ser financiado pelo Estado? Ministério da Cultura, ANCINE, Governo do Rio de Janeiro, Prefeitura do Rio de Janeiro, BNDES e Eletrobrás são os patrocinadores da apologia. Não se trata de mero mau uso do dinheiro público, conduta por si já condenável. Trata-se de desrespeitar as instituições como valor garantidor da cidadania. Trata-se de não reconhecer que os marcos normativos se traduzem em garantias que dizem respeito à manutenção da eficácia e à proteção da ordem pública contra fatores que possam colocá-la em risco. O que o filme revela é que alguns se acham autorizados a romper a ordem legal, como se o consenso nela expresso fosse um obstáculo na construção do que acreditam ser a sociedade ideal. A sociedade ideal se constrói no livre confronto das idéias e não sob a desmoralização sistemática das instituições. O patrocínio estatal ao consumo recreativo da maconha me faz lembrar do extinto Instituto Brasileiro do Café, criado em 1952 sob a forma de autarquia para o fim de, entre outros, definir a qualidade do produto para o consumo. A seguir a lógica dos patrocinadores do filme, logo veremos a Seleção Brasileira de Futebol ostentando em seu uniforme a logomarca dessa nova autarquia, como ocorreu entre os anos de 79 a 83, período em que o IBC patrocinava a Seleção Canarinho. Mas enquanto não se altera a lei relativa aos impedimentos ao consumo da maconha, não vejo como esse patrocínio possa vingar. Mas como vingou, então, esse patrocínio se a Administração Pública, antes de mais nada, está presa ao princípio da legalidade? A meu sentir, a conduta dos patrocinadores, agentes públicos que são, contraria a lei, indicando falta no que tange aos procedimentos esperados da administração pública. Ao ferir o interesse público, cometeram os responsáveis improbidade administrativa. Não bastasse a discutível propaganda de empresas estatais que detém monopólio de serviços ou produtos, ainda temos mais essa na conta do contribuinte. Alô erva, Alô biscoito!
Luiz Filipe Ribeiro Coelho, advogado, ex-presidente da OAB-DF.